Duas newsletter atrás eu confessei para vocês que vivo em uma busca constante por livros que me deem a sensação de ler a Sally Rooney. É uma busca contraditória, em que eu me frustro com os livros mais do que me satisfaço e quando acho um que realmente se parece com a Rooney eu acho que ele se parece demais. Oh well, o que mais iria acontecer com uma millenial insatisfeita que quer ler sem parar sobre millenials insatisfeitos, não é? Então vamos mais uma vez falar sobre ter 30 e tantos anos e estar insatisfeita.
Isso porque minha tentativa mais recente desse gênero, Okay Days, foi e não foi um sucesso. A parte que me incomodou é que (eu falei que era contraditória) parece que vários pontos do livro estão ali para se parecer com Pessoas Normais: o personagem masculino inseguro, as perspectivas alternadas entre os membros do casal, a viagem para algum lugar mediterrâneo. E ainda assim, apesar do briefing que a escritora parece ter recebido, ele é um livro com bastante personalidade e quase toda ela vem de um senso de lugar que eu ainda não tinha visto tão claramente nessa literatura.
A protagonista feminina, Sam, é sueca, mas está passando o verão em Londres. A cada dia do verão ela lamenta ter que voltar para Estocolmo e quando volta nada naquela cidade faz sentido. A jornada da personagem é em vários sentidos a de se encontrar em Londres, a de entender que as escolhas que ela está fazendo para sua vida passam também pela escolha de onde morar e que a escolha de onde morar é uma escolha de onde viver.
Eu gosto que o lugar de origem dela seja Estocolmo, uma cidade linda, objetivamente muito mais bonita que Londres. Uma cidade escandinava, uma capital europeia. E também, Sam sente e eu entendo, um tanto provinciana. Estocolmo não é uma vila, mas é uma cidade de menos de um milhão de habitantes deslocada do centro geográfico do continente. A vida é com certeza mais fácil lá do que em Londres, mas é também menos e esse menos é insuportável para Sam.
Eu tenho muitas conversas sobre viver em São Paulo e sobre o tuiteiro médio que adora falar mal da cidade. Ou sobre como uma parte da população tuiteiro médio (que pode não ser tuiteiro, aqui eu uso como uma categoria sociológica, risos) decidiu que é pouco cool gostar e se importar com São Paulo. Eles moram aqui, em parte porque o capitalismo obriga, em parte porque as pessoas são extremamente passivas com suas escolhas de como viver (e esse é um pouco o tema dessa newsletter), mas odeiam. E tornam odiar sua personalidade.
Eu tenho mil questões com a pessoa usar a própria infelicidade como forma de marcar posição e olha que ninguém gosta mais de marcar uma posição que eu, eu acho que estar certa É a via da felicidade, etc, etc, mas no geral vamos dizer que eu acho tornar as coisas que você odeia uma marca da sua personalidade só muito chato. Chato de sem graça mesmo, monótono, desinteressante. Odiar é chato, mas também viver anunciando aos quatro ventos que você é uma pessoa que não consegue ver a graça de uma metrópole me parece o mesmo que gritar uma pobreza de espírito.
Vejam, não falo não gostar. É diferente não gostar de entender o que os outros gostam. Sam não fala mal de Estocolmo hora nenhuma, ela entende o charme e a atração da cidade, assim como entende os defeitos de Londres e é isso que torna esse tema interessante no livro. Porque se tudo fosse objetivamente melhor ou pior então não era uma escolha. Ou melhor, não era uma escolha que exigiria auto-conhecimento para ser feita.
Eu moro no centro de São Paulo e só esse ano tive meu celular furtado naquele círculo do inferno que é a Faria Lima e vi um pombo perneta cagando na rua. Eu não vou tecer odes poéticos à cidade. Às vezes é uma merda, às vezes é horrorosa. Às vezes é domingo à noite e eu estou vendo a Fernanda Montenegro ler textos da Simone de Beauvoir sob a lua cheia em um auditório desenhado pelo Oscar Niemeyer. Eu entendo as pessoas que não precisam viver em um lugar onde essas coisas são possibilidades, mas que elas não entendam que algumas pessoas precisam sim me parece egocentrismo e a ausência dessa perspectiva de que nossa vida é uma série de escolhas não objetivas, não óbvias.
Eu fui adolescente fora de São Paulo e eu sonhava todo dia com uma vida em que as ruas fossem lotadas e que houvesse uma oferta cultural infinita ao alcance da minha mão. Eu vim para São Paulo e conto na mão as cidades do mundo pelas quais deixaria isso aqui (no Brasil a resposta é nenhuma, nem perguntem) porque eu sou uma pessoa, como Sam, que precisa da metrópole. Que precisa do cosmopolitismo e do excesso e da velocidade. Eu não quero uma vida mais fácil ou mais tranquila, eu não quero silêncio. Em uma das passagens que eu mais gostei do livro, ela passeia pelo southbank do Tâmisa e reflete sobre o British Film Institute e o pombo chafurdando no vômito. O arco da personagem é em muitos sentidos entender que Londres não é perfeita, e nem ela, e talvez querer viver numa cidade assim seja um dos seus defeitos. Mas ela é o que é.
Esse assunto me interessa muito porque eu sinto, nas constantes threads de ódio a São Paulo, uma busca por uma objetividade. Uma busca por encontrar uma forma de vida que seja Correta, Ideal. Como eu disse nessa mesma última newsletter que linkei lá no começo, eu acho que nós somos uma geração muito angustiada pela falta de manual e pela possibilidade infinita de escolhas. A cidade nem sempre é uma escolha para todo mundo, eu sei, mas como a gente se relaciona com ela, como a gente vive nela, pode ser.
Eu tenho amigos que moram em casas onde cabem cachorros grandes em bairros residenciais. Eu moro em um apartamento em uma das avenidas mais movimentadas da cidade. Eles precisam de carro e levam mais tempo para chegar nos lugares. Eu sou acordada as 4 da manhã por gritos de “ladrãaaaaao". É fácil, mas também raso e, de novo, meio pobre intelectualmente, afirmar com toda a certeza que a vida no silêncio e com espaço é melhor. Ou que a vida na proximidade das coisas é. Nenhuma é. Tudo depende.
Em Okay Days a Sam se bate muito com a escolha por Londres porque essa opção é reveladora de outras coisas sobre ela. Seu gosto por drogas e festas, uma consciência de que ela nunca vai - e nem quer - desacelerar seu jeito, a percepção de que ela não quer, nunca, ter filhos. O que a atrai em Londres é a cidade, mas é também a possibilidade de ela ser quem quer ser e eu acho que a gente pensa muito pouco em como os espaços da nossa existência estão diretamente ligados ao modo dela. Escolher onde viver é escolher como viver e escolher como viver é ter que olhar de forma dura e clara para quem você é. E eu entendo, mas também julgo, que boa parte da minha geração não queira fazer isso.
Eu sei que um comentário vai vir me dizer que escolheu onde morar porque é onde pode pagar o aluguel. Sim, eu estou ciente de como funciona o capitalismo e a exploração do proletariado, não é disso que estou falando. Mas talvez isso não sejam coisas desconectadas. Quando eu falo possibilidade de escolha, eu estou falando de possibilidade de escolha em suas condições materiais, quando falo de gente escolhendo onde viver é escolhendo mesmo e da falta de consciência para pensar como se quer viver é também em gente para quem, materialmente, essa escolha é possível. Eu sou mais materialista que quase qualquer um que você conhece. E porém.
Porém eu já falei aqui antes, no texto de mais sucesso dessa newsletter, de como me parece que uma parte do discurso atual em relação à exploração capitalista se supõe politizado, mas é conformista porque senta em um lugar que diz que toda escolha foi retirada pelo sistema. Que só sobra a vida no mínimo possível. Certamente o capitalismo enfiaria todos nós em casas iguais e comeria qualquer possibilidade de escolha de vida que não fosse escolha de consumo. Mas de novo, ele quer, você pode tentar não dar.
Eu entendo que escolher, e saber quem você é para pensar profundamente sobre como você quer viver no seu espaço, é algo difícil. E portanto eu entendo o impulso de dizer “mas não é uma escolha". Exceto que é, no mínimo a sua circulação é.
Semana passada, quando ainda fazia frio nessa cidade que virou um tanque de pasteurização, eu saí do trabalho as 5 da tarde e fui à uma sessão de “Cleo das 5 as 7", eu saí e decidi caminhar até o ponto de ônibus mais longe, minha mão doendo de frio segurando o cigarro, meu cabelo emaranhado num cachecol que não era quente suficiente. Eu estava terminando Okay Days e esse texto começou a nascer aí, nessa escolha em um dia de semana de estar na cidade.
Nessa e quando umas semanas atrás eu estava em Paris e um rato passou correndo pela estação de metrô. Não no trilho, na estação mesmo, ali caminhando junto com todo mundo em meio aqueles azulejos brancos como quem vai comprar uma baguete. A metrópole, não é mesmo?
Tem muitas coisas que amei (e me identifiquei) nesse texto. Amo São Paulo. E tenho uma preguiça gigante de quem torna “odiar” sua personalidade. Que delicia de ler. Rascunhei um comentário imenso e deletei tudo porque o resumo é esse: que delícia de ler.
Adorei! Eu morei em São Paulo por anos e era muito meu lugar, o que eu precisava, até não ser mais (mesmo que tudo parecesse favorável a eu ficar). Quando entendi que precisava de outra experiência, encontrei lugares novos de contentamento ao perceber que havia e sempre há escolhas! 💫