Antes da gente começar e é bom ser honesta com vocês e porque escrever é em parte o que eu faço da vida, queria contar que esse ano a newsletter é parceira de duas editoras: a Fósforo e a Companhia das Letras. Além disso, eu recebo livros da Todavia, da DBA e da Instante com bastante frequência.
Isso não quer dizer que é só disso que eu vou falar e eu tenho feito um esforço muito ativo de ler mais clássicos e manter minha curadoria de leituras independente do dilúvio de lançamentos chegando na minha casa. Mas só pra vocês saberem que eu tenho recebido esses lançamentos.
Enquanto isso, eu tenho um cupom pra quem tiver interesse em assinar a Círculo de Poemas, anual ou semestralmente. Só clicar aqui e usar ISADORASINAY15 na hora de pagar. Eu não ganho dinheiro nenhum, apenas o karma de divulgar poesia e na melhor das hipóteses um livrinho.
Eu acho engraçado como nesse tempo de internet, e principalmente nos últimos anos dessa newsletter, o que eu falo por aqui virou uma marca. Alguns temas são meus temas, algumas obras enchem minhas DMs de gente desesperada para saber o que eu achei. Babygirl foi um desses eventos, lá no início do ano; De Quatro foi o mais recente.
Eu confesso que embora eu saiba que estou bem no clichê do público dela, a Miranda July nunca aconteceu pra mim. Me and You and Everyone You Know foi lançado bem quando eu era uma adolescente indie com aspirações de cineasta, mas algo ali não me pegou. Algo nela nunca me pegou. Sempre parecia que ela acreditava em si mesma como uma manic pixie dream girl, na própria capacidade da sua arte de conectar pessoas, ou que ela realmente, de verdade, em pleno século 21, estava fazendo algo inovador.
Eu sempre fui mais cínica que isso. Todas as coisas pareciam esquisitinhas demais, meio olha pra mim como eu penso fora da caixa, mas no fim das contas era tudo derivativo de algo que ela nem sabia direito que era derivativo. Como se ela não tivesse visto Agnes Varda suficiente.
Ainda assim, eu peguei De Quatro animada. Todo mundo que eu conheço gostou, as críticas eram boas e o tema era, eu sei, Meu Tema. Além disso, ele parecia vir em uma onda de histórias sobre mulheres de 40, 50 anos enfrentando seus desejos. Quando eu saí de Babygirl, meu primeiro comentário foi que a idade da protagonista parecia adequada e significativa, uma geração para quem a libertação sexual foi meio em partes, uma mulher da minha idade jamais teria tanta neura com gostar de BDSM, a gente tudo viu A Secretária antes de ser apropriado.
A Nicole Kidman, contudo, é só três anos mais nova que a Sarah Jessica Parker, a mulher que criou essa colunista sexual de newsletter que infelizmente jamais poderia pagar as contas com um texto por semana, mas eu bem que queria. Ainda assim, apesar de todo o impacto que Sex and the City teve na minha vida (e teve mesmo, sem brincadeira) o que a gente vê ali é uma liberdade sexual a serviço da monogamia e não da experimentação.
Exceto pela Samantha, e a gente já fala dela, as outras três querem relacionamentos estáveis monogâmicos. O que exatamente é o ponto final desse relacionamento - casamento de véu e grinalda ou não; se ele vai gerar filhos ou não - pode variar, mas Carrie, Charlote e Miranda estão em busca do cara certo, do amor pra dividir a vida, daquele que depois que você encontrar vai abandonar a montanha russa do namoro e sexo casual. Elas transam com muita gente, mas não porque estão em busca de transar com muita gente e sim porque encontrar o amor na contemporaneidade é difícil e elas precisam testar um monte antes de achar. E ok, nós não estamos mais no tempo da Jane Austen, elas podem dar umas trepadas enquanto isso, mas o ponto é trepar com uma pessoa só no final.
A Samantha não está em busca de nada disso e eu acho um ponto forte da série o como a personagem é sustentada como fora do normal, mas não julgada. No fim, ela até é domada pela monogamia, lógico, mas pelo menos ganha um novinho gostosão. A questão é que o tempo todo as personagens comentam que Samantha é seu próprio animal, o valor que ela coloca no sexo pelo sexo e na experimentação só por curiosidade e prazer a fazem ser o tempo todo comparada com um homem. A série não julga, mas marca o tempo todo sua excepcionalidade.
Eu toquei nisso umas duas semanas atrás, mas eu realmente acho que todas nós precisamos começar a encarar sexualidade e relacionamentos mais como um homem.
Enfim, meu ponto aqui, e que eu fiquei pensando muito logo depois de Babygirl, é que existe uma geração de mulheres para quem a liberdade sexual foi permitida e o rótulo de puta retirado, desde que você estivesse transando com todo mundo em busca de transar com um só. A farra é temporária, o casamento é o caminho. E embora essa visão acomode uma mulher com experiência, ela não acomoda a possibilidade de que a pessoa com a qual você queria dividir a vida não seja a pessoa que te dá tesão. Ou não mais. Ou não agora, sei lá.
Minha maior questão com a lógica da monogamia é que ela pede demais de uma pessoa só. Ela propõe que a mesma pessoa te faça sentir tesão, te entregue um sexo satisfatório, que você queira morar com ela e portanto que vocês sejam compatíveis em tudo que isso requer. Que vocês tenham visões adequadas a respeito de dinheiro, de valores, de como viver. E que essas coisas não mudem ou se descompassem com o tempo. Que o tesão não passe, ou que, se ele passar, ninguém fale disso.
É um jogo tão perdido que eu não canso de ficar surpresa com como vocês continuam querendo jogar.
De Quatro entende os problemas dessa proposta. Mas como quase toda a esquerda de internet (o que, escrevendo agora, faz todo sentido), o livro confunde diagnóstico com ação. Ele vê as falhas, mas no final é incapaz de imaginar outro modelo. E aí eu entendo perfeitamente porque todo mundo queria que eu lesse e viesse falar desse livro, mas vou confessar logo que ele me decepcionou.
Eu amo como a história começa e se você é uma das poucas pessoas nesse canto da internet que ainda não leu esse livro, um resumo: a protagonista é uma mulher de 45 que decide fazer uma viagem de carro cruzando os Estados Unidos. Acontece que, ainda nos subúrbios de Los Angeles, ela fica obsessivamente atraída por Davey e começa um caso com ele. Essa parte eu achei ótima.
Eu gostei de como ela representa esse desejo fulminante como um despertar e de como a July investiga as fronteiras do que é um caso. A protagonista não tem problema nenhum em trair o marido, mas Davey, bem mais novo, bem mais no início do casamento que ela, diz que não, que não pode fazer isso com a mulher. Isso sendo beijar a protagonista na boca e colocar o pau na vagina dela. Vê-la pelada, colocar um ob dentro dela, dormir junto e criar toda uma intimidade de relacionamento, isso tudo bem.
Se Davey fosse meu amigo eu ia dizer que ele é só burro, mas do ponto de vista narrativo e da reflexão eu achei tudo muito interessante. O que é o erótico, afinal? Onde ele extrapola ou se difere do meramente sexual? Qual os limites de um caso? O que configura um caso? O que é mais grave, a infidelidade sexual ou se permitir envolvimento emocional? Eu tenho minhas respostas para essas perguntas que não são de forma alguma respostas objetivas, mas tendo a achar todas as fronteiras entre as coisas fascinantes e é nesse lugar que mora a primeira parte do livro. O que é a infidelidade? O que é o erótico?
Porém, a semana que ela tem com Davey acaba, ela volta para casa, ele se muda para Sacramento e a personagem cai em uma obsessão deprimida. Been there done that. E nessa obsessão, ela começa a refletir a respeito do seu casamento e da pouca satisfação que tem tirado dele. Ótimo, bom começo. Mas ela não vai muito além disso.
A segunda parte do livro é essa mulher pensando que nunca mais vai sentir o que sentiu com Davey, porque está casada, mas também porque se descobre na perimenopausa e um gráfico que ela vê na internet diz que seus hormônios sexuais estão prestes a se jogar do abismo e como assim ela perdeu todos os seus melhores anos de desejo em um casamento. Eu me pergunto isso também. E eu acho essa angústia mais do que adequada.
Se o tesão passa, e ele passa, o que a gente faz com o desejo no sistema da monogamia? Cada casamento monogâmico é, necessariamente, um contrato que diz que o desejo é algo secundário, que as partes estão concordando com uma vida sexual satisfatória (pra não aparecer alguém aqui me acusando de dizer que todo casado transa mal), mas sem arrebatamento. Isso porque o desejo nasce em boa medida da escassez. O Bataille passa páginas e páginas em O Erotismo definindo o erótico como aquilo que está na dimensão do tabu, sendo o tabu o proibido ao ato, mas também aos olhos. O que não se vê. O que não se pode. Por um questão moral, mas também prática, ele até considera.
O erotismo do Bataille, e ninguém ainda me ofereceu uma definição melhor que a dele, nasce do buraco entre eu e o outro, da minha vontade de me derreter no corpo do outro e impossibilidade de fazer isso. Ele não sobrevive à familiaridade e não deve sobreviver.
Mas e aí? O que essa personagem, que não lê Bataille, vai fazer com isso?
Ela meio que não faz nada. Ela e o marido conversam sobre abrir o casamento, mas no momento em que começam a sair com outras pessoas qualquer relação sexual ou amorosa entre eles morre. Ou seja, eles seguem monogâmicos no fundo, mas com um roommate com o qual têm um filhe. E quando uma nova amante pergunta à protagonista se ela está pensando em poliamor, ela diz que não, imagina, nada disso, ela é só uma alma muito livre, fazendo sua própria coisa. Só que essa coisa foi feita por centenas de pessoas antes e ela não se dá ao trabalho de descobrir.
Me incomoda que embora a personagem faça pesquisas com suas conhecidas a respeito de fidelidade e menopausa, ela não lê o que todas as mulheres antes dela já escreveram. Ela cita superficialmente a Simone de Beauvoir, mas não descobre que o relacionamento amoroso (e não só amor de amizade) entre ela e o Sartre durou a vida toda, mas o sexual muito pouco. Que essa mulher manteve um parceiro de vida inteira, sem nunca morar com ele e se apaixonando por diversos outros e outras.
Eu entendo que o que fazer com a anestesia do desejo no casamento tradicional seja um tema do momento. Até porque, no fundo, a ideia do casamento nunca acomodou mesmo essa morte: homens sempre traíram, mulheres só não tinham desejo. Que uma geração inteira de mulheres esteja contemplando que ainda têm 40, 50 anos para viver e o que vão fazer com sua sexualidade durante todo esse tempo me parece ótimo e urgente. Mas esse livro, pelo menos, parece responder à pergunta só com “troque de parceiro".
Sim, claro, eu não tenho nada contra as pessoas terminarem, mas isso não responde a nenhuma das perguntas ontológicas que essa sensação traz. Não propõe nenhuma nova ideia ou modelo. Não acomoda o que fazer quando os sentimentos amorosos e sexuais se desencontram. Contudo, o livro se acha muito ousado, muito original, a protagonista acha que está vivendo como ninguém nunca viveu antes.
Simone de Beauvoir era não monogâmica nos anos 50. Aldous Huxley nos anos 30. O Jack Kerouak esteve em um trisal com o Neal Cassidy e a mulher dele.
Babygirl, provavelmente porque a diretora não é americana, me parece chegar num lugar mais interessante e ainda assim, o final me pareceu a parte mais fraca do filme.
A questão é com certeza urgente, mas as respostas parecem medrosas.
Li seu texto e deixo um comentário: não acho válido para mulheres terem sexo casual. Todas que conheço que optaram por essa prática se tornaram intolerantes aos homens, e quero frisar que, nessa parte, os homens são diferentes das mulheres por possuírem um instinto mais animal. Conheci muitas "Samantha" na minha vida e, mesmo tendo um homem bom como companheiro, elas optaram por não ter uma rotina afetiva. Uma das coisas que sempre observei é que essas mulheres não seguem rotinas em nada; vivem numa competição frustrada, querendo sempre mais delas mesmas e dos outros. Quem não gosta de rotina, tanto homem quanto mulher, é melhor não casar nunca, porque vai cansar e pular fora na primeira dificuldade.
Isso me leva a discordar sobre encarar a sexualidade e o relacionamento como um homem. A mulher não ganharia nada com isso. Desculpe, mas esse é o meu ponto de vista.
Outro ponto com o qual discordo é a ideia de que a monogamia pede demais de uma pessoa. A monogamia não pede nada a ninguém; é a pessoa que escolhe ser monogâmica ou não. São essas escolhas que fazem com que vejamos gente casando e se separando como quem troca de roupa nos dias de hoje.
Outro ponto é a afirmação de que o desejo nasce, em certa medida, da escassez. No meu ponto de vista, o desejo não nasce, ele se cria. Ninguém criaria desejo por comer uma maçã se não lhe fosse inserido no consciente que a maçã é gostosa. Portanto, não se trata do nascimento do desejo, mas da inserção dele, o qual ou você alimenta para crescer ou simplesmente ignora.
Por fim, acredito que o amor transcende o sexo. Uma vida sexual ativa é importante num relacionamento amoroso, mas é apenas uma fração do amor. Minha tese é que cada ser humano é um mundo, e até hoje desconheço alguém que conheça o mundo inteiro. Vemos quem já viajou por ele todo, quem sacrificou a vida para descobrir tudo, mas desconheço quem, de fato, tenha conseguido. E isso é o casamento monogâmico.
Isso sem contar que é chato.