I'm starting to think one day I'll tell the story of us
Sobre o show da Taylor, é claro. Mas também sobre a Annie Ernaux.
Em um domingo de 2013, em agosto, eu tinha 24 anos e embarcava sozinha em uma ponte aérea. Eu me acomodei em um assento da janela, encostei a cabeça na parede e observei a orla do Rio de Janeiro ficar menor, o por do sol ficar mais laranja, puxei um casaco da bolsa porque eu lembrei que em São Paulo fazia frio. Eu fiquei ali, olhando aquela cidade até ela sumir e então coloquei All Too Well pra tocar e chorei durante 45 minutos porque um homem por quem eu estava apaixonada tinha acabado de me dizer que ia embora do país.
Nesse momento eu ainda não sabia o que fazer com aquilo, eu não sabia que era o fim e nem como esse fim iria acontecer. Quando eu soube, eu passei muito mais do que 45 minutos ouvindo All Too Well no repeat enquanto eu chorava até o ponto de inflamar meu canal lacrimal (eu já contei essa história, eu gosto dela porque nada expõe mais a minha doidice). Eu recomeçava a música e eu chorava, sentada no chão da sala do apartamento em que eu vivia na época, apoiada em um sofá vermelho que eu não faço ideia onde está agora.
O choro não fez eu me sentir melhor e eu não sei se melhor é a palavra para o que a música fazia. Mas conforme eu tocava ela de novo e repetia as palavras, sem cantar, só recitando, eu começava a abrir lugar dentro de mim para o que estava acontecendo. Eu me sentia menos humilhada, menos sozinha. Aquilo era legítimo, palpável e eu ia sobreviver. Porque outra pessoa tinha escrito aquela música e sobrevivido.
And maybe we got lost in translation
Maybe I asked for too much
But maybe this thing was a masterpiece 'til you tore it all up
Running scared, I was there
I remember it all too wellAnd you call me up again just to break me like a promise
So casually cruel in the name of being honest
I'm a crumpled up piece of paper lying here
'Cause I remember it all, all, all
Too well
Letras de música talvez sejam a maior forma de educação sentimental da nossa geração e obviamente não é uma exclusividade da Taylor Swift. Músicas são uma forma imediata e intensa de comunicar uma experiência e ao mesmo tempo te isolar em um casulo protetor em que só existe você, os sons e aquilo que você está sentindo. É por isso que quase todo adolescente se relaciona com música de uma forma tão intensa: porque nessa idade a gente ainda não sabe nomear o sentir, não entende o que é possível ou não, o que é seu ou do mundo, o que vai passar. É aquela frase do Baldwin de que você se pensa único até ler, mas ler leva mais tempo do que ouvir uma música, mesmo que ela seja All Too Well de dez minutos.
Eu escrevi um tempo atrás sobre quando eu descobri a Fiona Apple e o como ela foi minha primeira educação sentimental. O como aquelas músicas, mas também aquela imagem, me mostraram uma forma de ser mulher que eu não conhecia e eu a guardo até hoje comigo (ela ficou em segundo lugar no meu spotify wrapped, se vocês precisam saber), mas conforme eu entrei nos 20 e poucos, foi a Taylor Swift que eu levei comigo. Menos ela me levando pela mão, mais uma sensação da gente tropeçar juntas.
Eu sei que nesse momento algum homem leitor dessa newsletter torceu o nariz e pensou “nossa, mas você foi e andou pra trás” porque nem todo homem, mas sempre um homem. Eu acho a Fiona Apple um gênio de uma forma diferente, com certeza mais ousada e interessante musicalmente, mas isso aqui é sobre escrita e a minha experiência com a escrita de uma artista. Eu nunca abandonei essa primeira das minhas cantoras, mas exceto pelos últimos dois álbuns há na Fiona sentimentos que são complexos, lindamente anunciados, mas obscuros. Mesmo nas músicas de amor, mesmo no desejo, é como se ela cantasse do fundo da caverna, de debaixo do mar, de algum tipo de profundeza que eu reconheço em mim também, mas que não foi o tom principal dos meus vinte anos. Eu achei ser criança e adolescente uma experiência violenta e sofrida, mas entrar na vida adulta foi algo empolgante, estático, fervilhante de coisas e experiências e sentimentos. Sim, eu inflamei meu canal lacrimal de tanto chorar. E é possível que na noite desse mesmo dia eu tenha saído para dançar e beijado desconhecidos. Eu perdi a mim mesma e mergulhei em abismos inenarráveis mais ou menos nessa época. E ainda assim. Eu queria ser do mundo. Eu queria alguém que fosse comigo.
So it's gonna be forever
Or it's gonna go down in flames
You can tell me when it's over, mm
If the high was worth the pain
Got a long list of ex-lovers
They'll tell you I'm insane
'Cause you know I love the players
And you love the game
Entra a Taylor Swift, que eu descobri exatamente no ano do lançamento de Fearless, o ano que eu fiz 20 anos. Eu estava, no dia do meu aniversário de 20 anos, presa em um relacionamento do qual eu ainda levaria dois anos para sair e que comeu minha alma de um jeito que até hoje eu não tive forças para escrever sobre e eu escrevo sobre tudo (Lived in the shade you were throwin' 'til all of my sunshine was gone). Ele era exatamente o tipo de homem que diria que a Taylor era apenas uma loira burrinha a serviço do imperialismo americano capitalista e como eu sabia disso, eu guardei ela pra mim. Eu ouvia You Belong To Me sozinha em fones de ouvido e lembrava de cinco anos antes, quando eu ficava com um menino que tinha namorada e queria mais que tudo que ele visse que era eu e não ela. Eu ouvia Fearless e recuperava a sensação do menino que eu tinha amado antes (que vamos ser honestos, eu ainda amava) e pensava que era exatamente eu dançaria em uma tempestade com meu melhor vestido. Eu senti meu passado explicado e validado nos sentimentos grandes e dramáticos que minhas amigas da época nunca tinham entendido. Estava tudo bem achar que a pessoa que você conhece aos 15 anos era o amor da sua vida ao ponto de comparar vocês a Romeu e Julieta. Ou se não estava tudo bem, pelo menos eu não era a única.
Eu senti essa exata sensação, a de que a intensidade, o destempero das coisas como eu sentia, como eu queria sentir, não era um erro, mas poderia ser uma escolha mais uma vez na vida. E essa vez foi em agosto desse ano agora, quando eu li Paixão Simples, da Annie Ernaux.
Quando eu tinha 14 anos eu ficava com um menino que tinha uma namorada escondida pelos corredores da escola. Todo mundo sabia e como é de se esperar de uma escola em uma cidade no interior de São Paulo no início dos anos 2000, eu paguei o preço. Um pouco depois de eu fazer 15, eu conheci outro menino e foi uma coisa que eu achei que o tempo ia me fazer repensar, mas ele não fez. Talvez esse tipo de encontro só seja possível quando você tem 15 anos, talvez ele fosse mesmo o amor da minha vida. Eu não sei de nada disso, mas eu sei que na época, nos dois casos, eu estava disposta a vier todo o desespero daquilo.
You took a Polaroid of us
Then discovered
(Then discovered)
The rest of the world was black and white
But we were in screaming color
Minhas amigas, que já que eu estou sendo honesta eu achava mesmo meio limitadinhas, viviam brigando comigo por isso e escrevendo no subnick do MSN aqueles slogans tipo “pego, mas não em apego". Não se apegar, não se envolver, não perder a cabeça por causa de um garoto era o ideal para elas. É curioso (eu tenho hipóteses, mas outro dia) que eu fosse a única declaradamente feminista entre elas e ainda assim a única que não sentia a necessidade de declarar a independência do poder que meninos (e meninas, mas eu não falava isso em voz alta na época) tinham sobre mim.
Eu nunca consegui seguir a lógica de evitar sofrimento para se manter no confortável. Eu nunca não consegui perseguir uma onda mesmo sabendo que eu vou sofrer depois. Eu nunca não bebi pensando na ressaca do dia seguinte. Eu entrei em muitas coisas sabendo que aquilo não ia, não poderia, dar certo, mas o que eu poderia ganhar até lá parecia superar tudo. E também. O sofrimento é uma onda. A montanha russa tem sua delícia quando desce. Eu, a Taylor Swift, a Annie Ernaux.
Perguntar se ele “mereceu”ou não isso tudo não faz nenhum sentido. E constatar que essa história começa a ser para mim tão estranha quanto se tivesse acontecido na vida de outra mulher não altera em nada o fato de que, graças a ele, eu me aproximei do limite que me separa do outro, a ponto de às vezes imaginar que iria chegar do outro lado.
Enquanto eu lia Paixão Simples eu pensava em todas as vezes que eu escutara amigas dizendo “se preserve” ou “ele não merece” como se a experiência da atração e do desejo fosse primeiro regida por algum tipo de meritocracia neoliberal e depois como se ela pudesse gastar a mulher que a vive. “Se preserve", de que, exatamente? Provavelmente elas me diriam que de deixar que ele saiba o quanto você o deseja, provavelmente elas me diriam que isso é algum tipo de humilhação.
Eu posso entender a lógica, eu acho. Mas eu escolho discordar dela, escolho recusar que querer alguém, ou se apaixonar por alguém, ou sentir qualquer coisa que seja enorme e destemperada seja uma fraqueza. Porque sentir tudo isso, e é aqui que a Ernaux é absolutamente revolucionária, é uma experiência e toda experiência é um ganho e, mais que isso, ela é sua.
Loving him is like driving a new Maserati down a dead end street
Faster than the wind, passionate as sin, ending so suddenly
Loving him is like trying to change your mind
Once you're already flying through the free fall
Like the colors in autumn, so bright, just before they lose it all
E aí eu volto pra Taylor. Esse texto é engraçado porque essa semana a Folha publicou justamente uma matéria que chamava a Taylor Swfit de “Annie Ernaux do pop” sem traçar efetivamente o paralelo. Meio mundo me mandou esse texto quando saiu porque era a coisa mais minha cara que as pessoas já tinham visto. E enquanto essa newsletter sempre ia ser escrita, com essa comparação, nessa semana, depois do show.
Porque o show, mas também o mês que o precedeu me fez entender algo sobre essa loucura que é ser Swiftie. É claro que é a Taylor, é claro que são as letras e as músicas e tudo mais. Mas é também o passaporte para uma comunidade de mulheres que sentem igual a você. Que não se preservam, que não ligam se ele merece ou não. Você não está sozinha não só porque uma mulher escreveu umas letras. Mas porque você não está mesmo.
E aí eu lembro da Flip do ano passado. Do auditório que aplaudiu de pé quando a Ernaux falou que sua escrita é a da experiência do corpo feminino e de mim, duas horas em pé numa fila na chuva para pegar um autógrafo. De todo mundo comigo na mesma fila. Das minhas amigas que vem circulando os livros dela como se a gente trocasse um segredo, falando em elogios sussurrados da experiência transformadora que tem sido lê-la. Que tem sido ver ganhar o Nobel essa mulher que sente desse jeito que escreve essas coisas.
Eu realmente não me importo se algum dos namorados da Taylor mereceu as coisas que ela escreve. O John Mayer certamente não merece The Story of Us. Não importa. Eles não são os protagonistas de nenhuma dessas letras, por mais que o olhar machista queira dizer que é. A protagonista é ela, a experiência é dela. Como era nossa, nos abraçando histéricas num estádio, vivendo aquilo sem medo, com a coragem de dizer que se fossemos homens estaria tudo bem. Como é da Ernaux ao final de Paixão Simples.
I was there, it was rare, I remember.
Todas as citações são músicas da Taylor Swift, é claro, exceto pela citação de Paixão Simples, da Annie Ernaux.
comecei a escutar taylor swift na mesma época que você e com a mesma idade. eu vivia tão intensamente nessa época, sentia tanto, doía tanto e assim como você, foi graças a ela que muita coisa dentro de mim começou a fazer sentido.
costumo dizer que crescemos juntas e é impossível olhar para minha vida adulta sem pensar em um álbum dela como trilha sonora. 1989 foi lançado no ano que mudei pra são paulo e fez tanto sentido que parecia que havia mudado para nova iorque com ela. sinto que por isso que me emocionei e gritei tanto no show porque as letras falam conosco muito mais do que um espetáculo que, na minha humilde opinião, é fabricado demais e genuíno de menos, completamente diferente das suas composições.
(curiosamente abri sua newsletter enquanto escutava as mais tristes da fiona apple e escrevo esse comentário ainda na mesma playlist)
Eu adoro quando você fala de música e educação sentimental 🖤